Você sabe o que está comendo?
Agência Nacional de Vigilância Sanitária quer informar a população sobre os riscos do consumo de alguns produtos, mas indústrias dos alimentos e da publicidade insistem na desinformação.
Se somos o que comemos, como defende a médica Gillian McKeith em seu livro “Você é o que Você Come!” (Ed. Alegro), devemos saber o que comemos ou o risco da alimentação que adotamos. Foi o que propôs uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), publicada no dia 29 de junho, que diz: produtos com alta quantidade de açúcar, gordura trans, saturada e sódio e bebidas com baixo teor nutricional, como os refrigerantes, devem vir acompanhados de alertas sobre os riscos à saúde causados pelo consumo excessivo dessas substâncias. Como já acontece com o cigarro.
Só para recordar, a defesa da indústria do tabaco se baseia no livre arbítrio do fumante, que mesmo sabendo do mal causado pelo fumo, assume o risco de fumar. No caso dos alimentos com estas substâncias em excesso, não há escolha voluntária, uma vez que o consumidor não conhece os riscos a que está sujeito. As propagandas de refrigerantes com ou sem açúcar, sorvetes e energéticos, por exemplo, mostram pessoas saudáveis e atraentes. No caso de produtos para crianças, a publicidade é ainda mais danosa porque a criança não consegue distinguir a propaganda da realidade.
A resolução publicada pela Anvisa concedeu às empresas o prazo de seis meses para passar a informar no rótulo e na propaganda do produto que, por exemplo, a ingestão de alimentos com muita gordura trans e saturada, comum em bolachas e sorvetes, eleva as chances de doença do coração e os riscos de diabetes e que a quantidade elevada de sódio, presente nos refrigerantes diet e light, aumenta o risco de pressão alta e de doenças do coração. A medida se estende a refrigerante, refrescos artificiais e bebidas com cafeína, taurina, glucoronolactona ou qualquer substância que atue como estimulante no sistema nervoso central, presente nos energéticos. No caso de alimentos com muito açúcar, por exemplo, terá que ser alertado que, se consumido em grande quantidade, aumenta o risco de obesidade e de cárie dentária.
A indústria da alimentação e o mercado publicitário reagiram à medida. Uma semana depois da publicação da resolução da Anvisa, as entidades ligadas a estes setores publicaram nos principais jornais do País o artigo “Em defesa do Estado de direito”, alegando a inconstitucionalidade da medida e a falta de competência da Anvisa para legislar sobre propaganda comercial. O argumento é de que a resolução ofende o artigo 22, XXIX da Constituição, que diz que “compete à lei federal dispor sobre propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde”. A Constituição cita apenas o tabaco, os remédios, bebidas alcoólicas e agrotóxicos.
Diante da pressão dos dois setores, a Advocacia Geral da União (AGU) decidiu suspender a resolução para analisar a competência da Anvisa para regulamentar o mercado publicitário. A AGU já se posicionou contra a Anvisa em matéria semelhante. Em junho do ano passado, suspendeu as regras prescritas pela agência para a propaganda de medicamentos, que obrigava a indústria a alertar o consumidor sobre os danos à saúde após cada comercial. Conseguiu apenas manter a advertência “Se persistirem os sintomas, o médico deverá ser consultado”.
Esta não é a primeira investida contra alimentos que fazem mal à saúde e, em especial, aos refrigerantes. Em 2004, a Comissão de Educação aprovou um projeto de autoria da senadora Lúcia Vânia (PSDB) que determina que as propagandas de refrigerantes devem conter advertências alertando os consumidores sobre os malefícios do produto para a saúde, especialmente problemas com obesidade. De acordo com o texto, as advertências devem ser faladas ou escritas, de acordo com as características do meio de comunicação, e o descumprimento da determinação sujeita os infratores a sanções que vão da advertência à apreensão do produto e à suspensão da publicidade, com a possibilidade de aplicação de multas que chegam a 30 a mil salários mínimos.
A senadora citou a obesidade crescente, que vem se tornando um problema de saúde pública, para justificar o projeto. Segundo dados do Ministério da Saúde, o número de adolescentes com excesso de peso no Brasil passou de 8,3% para 18% entre 1989 e 2003. A senadora argumenta que a publicidade destes produtos é direcionada principalmente a crianças e adolescentes. O projeto tramita em conjunto com diversas outras matérias e se encontra na Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática desde dezembro do ano passado.
Ação
Mais recentemente, em abril deste ano, a Associação Nacional para Defesa da Cidadania, Meio Ambiente e Democracia (Amarbrasil) entrou com uma ação na Justiça Federal, em Brasília, contra a União e a Anvisa, pedindo um plano para impor às indústrias, distribuidores e vendedores de refrigerantes a obrigação de advertir o consumidor, especialmente infantis e adolescentes, sobre os riscos quanto ao consumo excessivo do produto.
Na ação, a entidade exigia a inserção nos rótulos e comerciais de refrigerantes veiculados na internet, televisão e rádio as seguintes advertências: “o consumo excessivo deste produto pode causar obesidade, câncer de pâncreas, osteoporose e problemas dentários” e “não substitua o consumo diário de água por este produto”. Indicar nos vasilhames, em letras legíveis e destacadas, a quantidade diária máxima de consumo recomendada do produto, conforme a faixa de idade do consumidor, limitar a venda de refrigerante ao vasilhame de 1,5 litro.
Segundo a advogada da entidade, Najla Lopes Cintra, a resolução da Anvisa atende em grande parte o pedido para Amarbrasil, mas como se estende a uma grande gama de produtos, não atua especificamente em relação ao refrigerante. “Não exige que o fabricante destaque no rótulo e na publicidade o consumo máximo diário para que o produto não interfira no desenvolvimento da criança e na saúde do consumidor”, exemplifica.
A advogada conta que a entidade não só vai manter a ação na Justiça Federal “para que a resolução da Anvisa seja mais eficaz e atue mais no foco dos refrigerantes”, como vai incluir na ação todas as entidades que assinaram o artigo “Em defesa do Estado de Direito”. “Elas passaram a ser necessárias no polo passivo da ação”, explica Najla Cintra. Em relação ao argumento das indústrias de alimentos e da publicidade, de que a Anvisa não tem competência para legislar sobre publicidade, a advogada afirma que a agência “não está legislando, está regulamentando o setor”.
A coordenadora da Superintendência da Vigilância Sanitária de Goiás, Márcia Regina de Moura Dias, observa que cabe à Anvisa alertar sobre o risco dos produtos uma vez que os alimentos estão relacionados com uma dieta saudável e refletem na saúde pública. “E a propaganda interfere diretamente na escolha e no consumo dos alimentos”, afirma. Márcia Dias explica que a alimentação está relacionada com as doenças crônicas não transmissíveis, como hipertensão, obesidade e diabetes. “E o que se percebe é que estas doenças estão crescendo.”
Na opinião da superintendente, se a propaganda informar sobre os riscos do produto, o consumidor vai ter subsídios para fazer a melhor escolha. Ela dá exemplo dos refrigerantes diet e light, que fazem propaganda da pequena quantidade de açúcar, mas não informam sobre o sódio. “A pessoa que tem hipertensão não fica sabendo da quantidade de sódio e consome o refrigerante achando que fez a escolha mais saudável.” Por isso, observa Márcia Dias, a informação sobre o risco do consumo do produto deve ser a mais clara possível. Ela defende que estes produtos tenham uma frase alertando para os riscos do consumo, como já é feito em relação aos produtos infantis.
Algumas empresas, especialmente multinacionais, já adotaram no Brasil medidas que restringem a propaganda de alimentos infantis. É o caso da Unilever e da Nestlé, que não veiculam propagandas direcionadas a crianças menores de 12 anos. A Danone utiliza personagens da TV em anúncios de alimentos que sejam comprovadamente saudáveis e o McDonald’s anuncia os brindes do McLanche Feliz apenas utilizando a combinação mais saudável de seu cardápio, com nuggets de frango, suco e cenouras no lugar das batatas fritas.
A nutricionista Lorena Queiroz de Andrade Vieira é a favor de uma contrapropaganda aos refrigerantes. Ele enumera os fatores perniciosos à saúde: “Refrigerantes não têm nenhuma função alimentar, têm muito açúcar, portanto são muito calóricos e provocam obesidade e cárie, ou têm muito sódio, e elevam a pressão”. No caso das crianças, o consumo diário de refrigerantes interfere no desenvolvimento. “A criança precisa de vitaminas e minerais que o refrigerante não possui. E grande parte das famílias tem o hábito de oferecer refrigerante para as crianças no almoço e jantar. Isso gera uma deficiência de vitaminas na criança”, diz.
Segundo a nutricionista, o ideal seria investir na publicidade das frutas e dos sucos e “apenas eventualmente, em aniversários, consumir refrigerantes, assim mesmo com moderação”. Ela garante que a pessoa que bebe muito refrigerante vai ter alguma doença futura. Além de colocar nos rótulos os riscos do produto, a nutricionista defende uma campanha sobre educação alimentar nas escolas para reverter a realidade atual. “É alto o número de crianças de 4 e 5 anos que já apresentam colesterol alto.”
Para o médico Roque Gomide, presidente da Sociedade Goiana de Pediatria, a melhor hidratação ainda é a água, todavia ele admite que é difícil impor normas saudáveis à população por causa da cultura. “É difícil proibir a Coca-Cola, que é um produto fosforizado e, por isso, provoca a descalcificação óssea se consumido com frequência.” Além de ter uma ligação direta com o aumento da obesidade da população. “Para a criança, então, é deletério.”
O pediatra defende que estes produtos venham com alertas sobre o risco de consumo excessivo, como ocorre com o cigarro. “A pessoa continua fumando consciente do mal”, diz. Segundo ele, o consumo inconsciente dos riscos traz complicações mais tarde. “Não são visíveis agora, mas pode alterar o organismo e apresentar doenças no futuro.”
Brasil está atrasado diante de outros países
Alguns países já adotaram limites para a propaganda de alimentos para crianças e adolescentes. Na Inglaterra, é proibida qualquer publicidade de alimentos com alto teor de gordura, açúcar ou sal direcionada a menores de 16 anos e propaganda com desenhos animados para promover esses produtos só podem ser veiculadas após as 20 horas. Na França, o Ministério da Saúde exige que os valores nutricionais sejam claramente descritos nas embalagens, sobretudo se esses itens ficam próximos de zero. O país já estuda vetar todo tipo de anúncio de salgadinhos e refrigerantes na TV.
Na Suécia e Noruega, os anúncios de doces e refrigerantes dirigidos a crianças menores de 12 anos estão proibidos desde 1996 e é proibida a publicidade de qualquer tipo de alimento nos intervalos de programas infantis nos canais de televisão abertos. A Irlanda aprovou recentemente uma lei para regulamentar a publicidade no setor e, desde abril, o governo exige que alimentos com alto teor de açúcar, gordura e sal tragam avisos nas embalagens. No país, as celebridades são proibidas nos comerciais de comida considerada pouco saudável.
Os Estados Unidos ainda não fazem restrições à publicidade destes alimentos, mas essa tem sido uma preocupação demonstrada pelo presidente Barack Obama e pela primeira-dama Michelle Obama em seu programa de combate à obesidade infantil, que tem como meta reduzir o índice de obesidade das crianças em 2030 a 5% da população infantil, mesmo nível de 1970. Atualmente uma em cada três crianças americanas é obesa.
O programa interfere na rotulagem dos alimentos, no cardápio da merenda escolar e inclui incentivos públicos para a distribuição de alimentos saudáveis em todos os estabelecimentos que vendem comida. No condado de Santa Clara, na Califórnia, o McDonald’s e Burger King são proibidos de distribuir brinquedos junto com sanduíches de alto teor de gordura.
Reportagem veiculada no Jornal Opção do dia 07 de Agosto de 2010
Texto de Andréia Bahia.